Artigo publicado na Revista Saúde Notícias (Jornal Económico): A Psicossomática e a Perturbação Gastrointestinal Funcional

27-11-2020

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A dor, apesar de não ter ainda marcadores biológicos mensuráveis, possui um potencial de ação no contexto de um dano tecidular. Nestes casos, há algo a que podemos recorrer: uma lesão que medimos, nomeamos e sobre a qual podemos conduzir um tratamento orientado à cura, ou à paliação.

A origem da dor psicossomática não apresenta esta visibilidade concreta que nos é oferecida por um mecanismo de quantificação da subjetividade da dor. Mais: a dor oscila com a psique do doente e esta, em boa medida, manifesta-se como reação aos eventos que fazem parte do seu quadro de intimidade.

Donde, jamais podemos excluir os dados sobre os mecanismos biopsicossociais que tornam aquele nosso paciente numa pessoa única, no quadro do nosso universo de conhecimento.

É por causa desta subjetividade que a dor, sobretudo a dor psicossomática, tem de ser analisada à lupa: quem é esta pessoa cuja dor não se explica fisiologicamente, mas existe?


A unidade singular do doente é, por isso, uma circunstância importante sobre qual gostaria de deixar uma palavra e utilizo - para efeitos de concretização - o exemplo de duas pessoas que acompanho em processo neuropsicológico, ambas sofrendo da síndrome gastrointestinal funcional (SGF).

A SGF caracteriza-se pela dor abdominal contínua, persistente ou recorrente, não estando associada a uma etiologia da estrutura intestinal. Classifica-se como uma perturbação debilitante sem evidência de anormalidades estruturais (bioquímicas) que expliquem o sintoma. A esta associamos o enfraquecimento de todos os sistemas do individuo: familiar, social e profissional, com perda de funcionalidade diária e com prejuízo, por vezes grave, da qualidade de vida.

Embora se saiba que uma das possíveis causas da SGF possa estar associada à deficiência na inibição da dor homeostática, a qual pode estar relacionada com a atividade anormal de um neuropeptídeo, o facto é que as pessoas referidas deste exemplo, apesar de medicadas para o efeito, não mostravam evolução positiva.

Em ambos os casos, o acompanhamento psicoterapêutico foi fornecendo a estas pessoas as ferramentas para se debruçarem sobre o seu interior e as reflexões que ambos os pacientes realizaram, acabou por conduzir a um efeito extraordinariamente útil no controlo dos sintomas.

Estas pessoas deixaram de sentir dor? Sim. Contudo, periodicamente e com diversa intensidade, esta dor reaparece, parecendo atuar como ferramenta de proteção face às circunstâncias psicossociais. Claramente se entende que há um mecanismo neurobiológico associado ao modo como pensam, sentem e se comportam no processo de origem da dor.

Em suma, a dor física, emocional e até moral e espiritual, constituem-se como parte do sistema biofisiológico do Ser, que se nos apresenta como um todo. Ou seja, nas estratégias de avaliação e tratamento da dor crónica e persistente, é necessário estudar as vertentes neuropsicológicas, bem como avaliar as componentes afetivas, presentes em processos de paliação da subjetividade.

Fernanda Barata